Virgilio Pedro Rigonatti

OFFICE-BOY

Por: Virgilio Pedro Rigonatti | Categoria: Cultura | 29-03-2017 13:03 | 1540
Foto: Reprodução

Aos onze anos, comecei meu primeiro emprego: a de office-boy. Fui substituir meu irmão mais velho na editora do saudoso sanfoneiro Mario Zan.
Minha mãe, Maria Clara, conheceu o "sanfoneiro do quarto centenário" justamente nas festas comemorativas dos quatrocentos anos da cidade de São Paulo na inauguração do Parque Ibirapuera. Meu irmão mais velho, Vircério, também sanfoneiro, tocou no show e eu o acompanhei no meu reco-reco. Mario Zan sempre arrumava uma apresentação nossa em circos, clubes ou em rádio. Em 1957, ele produziu o primeiro disco de músicas de crianças gravadas por crianças: "Brincando de Escola com Mario Zan". Isso, na época, foi uma grande novidade. Até então, músicas com tema de criança eram gravadas por cantores adultos, como o "Criança Feliz", grande sucesso de Chico Alves. No disco "Brincando de Escola", participamos em três faixas, gravando, inclusive, a música que deu nome ao LP.
Na época da gravação do disco, nós, eu e três irmãos, formávamos um conjunto: "Vircério e seus Maninhos".
Durante as gravações, Mario Zan ficou sabendo das dificuldades que meus pais passavam com seis filhos para criar: Vircério, o mais velho, tinha onze anos e Teresa, a mais nova, dois. Condoído, convidou o Vircério para trabalhar em sua editora de músicas como office-boy.
Dois anos depois, assumi o lugar do meu irmão mais velho que foi chamado para trabalhar em uma rede de lojas de tecidos.
Assim, com doze anos incompletos, ganhei meu primeiro emprego: orgulhosamente assumi a função de Office-boy, ganhando meio salário mínimo.
Hoje a categoria está esvaziada, se é que tem algum, digamos, especialista: ninguém é exclusivamente Office-boy.
Para entregas, as empresas terceirizam utilizando os motoboys ou enviando por sedex nos correios. Dificilmente é necessário postar cartas, boletos ou enviar telegramas nas agências: tudo é feito pela internet. Da mesma forma, levar contratos, notificações, cópias de documentos não é mais preciso: escaneia-se e manda por e-mail.
Atualmente, os bancos fazem de tudo para evitar que o cliente vá a uma de suas agências, pois eles têm verdadeiro horror ao cliente presencial. Faça tudo pela internet: pagamentos de títulos, boletos e contas, transferência de dinheiro, retirar talão de cheque, (quase não se usa mais), buscar extrato... Coisas que era a rapaziada da função que executava. 
No meu tempo, a gente aprendia ser experto fazendo os pagamentos diretamente nas agências bancárias. Não havia compensação de títulos bancários: as duplicatas e contas eram liquidadas diretamente no banco portador. Contas como a de eletricidade da Light, por exemplo, pagava-se no imponente prédio da empresa ao lado do Viaduto do Chá, em São Paulo. No caso dos títulos bancários, tinha-se que fazer uma verdadeira maratona em um ritmo acelerado, principalmente no último dia do mês, quando a grande maioria das duplicatas vencia. Eu elaborava um roteiro. Passava no balcão do banco A, entregava os títulos e recebia uma senha para aguardar a chamada no caixa, que demorava. A esperteza era se dirigir ao banco B, depois ao C, e assim por diante, entregando os títulos e pegando as respectivas senhas. Voltava ao banco A, dirigia-me ao caixa, fazia o pagamento e corria para o banco B para o mesmo procedimento. Em seguida ao C e aos outros até completar a tarefa. Tudo antes do fechamento do expediente bancário. Se não fosse experto, ágil, lépido, perderia o horário e o prazo de pagamento, incorrendo em despesas para a empresa e uma sonora bronca em meus ouvidos.
Imagina a responsabilidade nas costas de um garoto de onze/doze anos. Aprendia-se na marra a ser hábil, astucioso e ligeiro.
Em minha vida sempre pratiquei o futebol, tanto de campo como de salão. Minha principal característica era a velocidade. Sempre joguei na posição que antigamente se chamava beque central, mas gostava de sair em disparada e ir para a área adversária tentar um golzinho. Hoje pratico corrida de rua. Essa minha habilidade desenvolvi nos tempos de minha primeira profissão. Eu trabalhava meio expediente, estudava de manhã. À tarde, na editora, tinha que dar conta de todas as entregas, ir ao correio, levar documentos e fazer os pagamentos bancários. Tudo isso era feito no centro da cidade de São Paulo. Imprimia uma velocidade acelerada nas minhas passadas, mas não deixava de passar admirando os belos edifícios que compunham o centro histórico da cidade. Alguns, infelizmente, foram derrubados para dar lugar a enormes e feios arranha-céus, um grave crime ao Patrimônio Histórico. Conheço todos os espaços e ruas do centro da cidade graças à minha primeira atividade.
Todo mês, eu era mandado até o escritório da gravadora Chantecler para retirar o cheque dos direitos autorais do Mario Zan. Hoje não seria necessário, pois os créditos são feitos on-line. Bem, naquele tempo tinha que me deslocar até o local, que ficava a cerca de quatro quilômetros do centro da cidade. Eu recebia o dinheiro para a condução, ida e volta. Na primeira vez, peguei o ônibus que me indicaram. Aprendi o caminho e percebi que o trajeto não era tão longo assim, principalmente para um garoto ágil, de passadas largas e bem disposto. No mês seguinte, realizei um sonho que me acalentava. Todos os dias, várias vezes na jornada, eu passava em frente das Lojas Americanas, na Rua Direita, e via o monte de chocolates à venda em seus balcões, o que me salivava a boca e atiçava os desejos, porém não tinha dinheiro para comprar. A frustração era enorme e diária.
Na segunda vez em que fui enviado à Chantecler, pus em ação minha estratégia planejada desde a ida anterior. Com o dinheiro da condução, passei na loja, comprei um "Sonho de Valsa" e um "Diamante Negro" - era o que o dinheiro dava para comprar - e rapidamente fiz o percurso que havia aprendido.
Durante o trajeto, fui me deliciando com aquelas gostosuras, bem lentamente para saborear e durar o mais possível, mesmo que os chocolates fossem derretendo na mão pelo calor. Que prazer! Que felicidade!
Para poder cumprir a tarefa dentro do tempo do ônibus, acelerava o passo. Na ida eu tive a sensação deliciosa dos doces, na volta senti o amargor de não ter mais meus chocolates e a preocupação de chegar a tempo ao escritório. Mas ia observando o trajeto, fazendo estimativas de vias alternativas para abreviar o percurso e de fazê-lo em menor tempo. O que fiz pelos meus cálculos mentais, sem precisar de Waze algum.




* Virgilio Pedro Rigonatti,  Escritor, www.lereprazer.com.br rigonatti_pedro@terra.com.br autor do livro “MARIA CLARA a filha do coronel” que se encontra à venda nas livrarias Supertog, Estação do Livro e Livraria Beca