Na última semana dois casos envolvendo injúria racial chamaram atenção das mídias e ganharam grandes proporções devido à seriedade: o primeiro envolvendo uma “piada” feita pelo por um youtuber brasileiro ao associar a velocidade do jogado de futebol francês Mbappe em campo a arrastões feitos em praias cariocas por criminosos. O youtuber chegou e pedir desculpa em vídeo que circulou nas redes sociais e disse que não tinha a intenção de ofender ninguém. Outro caso, mais grave, envolveu a derrota do Brasil da Copa do Mundo na sexta-feira (6/7), após Bélgica abrir placar com gol contra cometido pelo jogador brasileiro Fernando Luiz Roza, o Fernandinho, sendo ele alvo de inúmeros ataques por meio das redes sociais. Ao jogador, usuário do Twitter atribuíram inúmeros apelidos de cunho pejorativo e que, nos temos da lei, podem se enquadrar como crime de injúria racial, aquele quando se tem a intenção de ofender alguém baseado em sua cor ou etnia.
Os casos não são inéditos e a cientista social, Eloíse Iara David, atribui parte do problema a uma cultura que seria preconceituosa por natureza e que, com a difusão das mídias sociais, apenas tem sido exposta. “Particularmente, já considero cansativo ter que repetir que o Brasil não tem nada de democracia racial. Apesar de nossa Carta Magna apregoar que somos todos iguais perante a lei, ainda não somos tratados de forma igualitária nas diversas esferas sociais. Uns grupos estão em desvantagem em relação a outros, temos uma situação em que pessoas negras estão em desvantagem social, isso significa muita coisa: as mulheres negras estão nos empregos com menor ganho econômico, os homens negros jovens são os que mais são assassinados em nossa sociedade conforme o Mapa da Violência, as pessoas negras são minoria em universidades, cargos de poder ou representa-tividade”, avalia.
Segundo explica Eloíse, o fato de isso ser estatístico, ou seja, um contexto que se repete amplamente em qualquer cidade brasileira significa que é fruto de um processo social e histórico, que não se deu ao acaso. “Em boa parte das cidades que visitar por nosso país, o racismo é geográfico: a maioria negra está geograficamente localizada nas margens das cidades e conforme se caminha para o centro, ele se embranquece. Por que a maioria negra não possui posses, dinheiro, ou prestígio social como a população de pele mais clara? Por que ela ainda habita as margens e não está nas posições de prestígio social ou entre os detentores de maior ganho econômico se nós brasileiros somos maioria negra?”, questiona a especialista.
Conforme Eloíse, para se compreender melhor as injúrias raciais acontecidas com o jogador Fernandinho, é fundamental observar mais de perto o que o futebol representa em nosso país. “Como diria o antropólogo Roberto DaMatta, o futebol é multivocacional, esporte, ritual e espetáculo, algo que gera prazer ao mesmo tempo que tem poder de disciplinar as massas. Embora o futebol seja uma atividade para fins de acúmulo financeiro para alguns, ele é assimilado pelas massas em forma ritual. Nas palavras do próprio autor, o futebol ‘orquestra componentes cívios básicos, identidades sociais importantes, valores culturais profundos e gostos individuais singulares’. O esporte, mais especificamente o futebol, não possuem o mesmo caráter utilitarista que determinadas atividades que geram dinheiro, como o trabalho, atividades estas que sejam vistas socialmente como úteis, isso faz com que o momento do futebol seja o momento de pausa da labuta cotidiana do povo brasileiro. Se pelo trabalho o sistema econômico se realiza, pelo futebol se ritualiza o processo em que as pessoas internalizam e externalizam a competição e os valores de nossa sociedade atual”, elucida.
Eloíse analise ainda a dimensão que uma copa do mundo possui, momento em que todo o mundo está voltado para esse acontecimento. “É um nível de intensidade coletiva muito alta, de alta intensidade pública e de fervor coletivo. Tudo que é dito é amplamente ouvido e se torna, portanto, o momento de estabelecer ou reafirmar o melhor e o pior de nossos valores. O torcedor - do estádio ou em casa - cria um espetáculo à parte, é um evento próprio que ocorre paralelo ao jogo, e ouvir o que esse personagem considera como ofensa ou elogio é material de muitos estudos das Ciências Sociais, pois são fonte das compreensões latentes do que a sociedade compreende como o melhor ou o pior de nossa sociedade”, destaca.
“Lembra-nos Sérgio Buarque de Holanda que o povo brasileiro é um povo considerado cordial. Não no sentido positivo que usualmente se toma a palavra, do latim cor, faz referência ao coração. Se trata, portanto, de um sujeito em que há um impulso a atitudes coletivas motivadas pelo afeto - no sentido de se deixar afetar emocionalmente, seja de forma positiva ou negativa - ao invés de comportamentos motivados pela racionalidade, lógica ou eficiência. É justamente nesses momentos de fervor coletivo e principalmente numa copa mundial é que esse comportamento de emoções afetadas se intensifica, saindo reações, valores que estavam latentes. Algo que habita o interior do povo brasileiro não por escolha de cada indivíduo, mas por algo que nós cultivamos socialmente na formação do povo brasileiro. Educação não é apenas transmissão dos ‘melhores’ valores, mas também de valores negativos ou positivos, formas de agir, pensar, a forma como percebemos o mundo que aprendemos com nossos pais, avós, escolas, livros, televisão, mídias sociais e assim por diante”, acrescenta.
Segundo destaca, nessa educação brasileira é transmitido também o que há de melhor ou pior em uma cultura. “Nem toda tradição cultural é positiva e a nossa é de raiz escravocrata, que enxerga o negro em condições subalternas como algo natural e corriqueiro. Essa raiz nos tem custado muito caro até a atualidade, e seu alto preço surge em momentos como esse, em que o jogador Fernandinho e sua família têm sido achincalhados, humilhados não pela qualidade do exercício de sua profissão, mas por sua etnia, pela sua existência enquanto homem negro. Esse episódio conflituoso expõe para toda nossa sociedade a forma como nossas raízes culturais enxergam a pessoa negra, ser negro é ainda considerado uma existência ofensiva e há uma grande dificuldade do povo brasileiro reconhecer o negro como ser humano e tratá-lo de maneira equânime”, avalia.
De acordo com Eloíse, a dificuldade com esse episódio nasce no não reconhecimento do racismo brasileiro. “Isso se dá pela forma velada que ele ocorre, afinal ‘é só uma piada’ ou ‘é só uma brincadeira’, mas no máximo do ódio e expressão da raiva borbulhante deixa de ser piada para se tornar afirmativa como quem diz ‘negro, lembre-se do seu lugar’. Declarações como a da CBF só apontam para isso, ela afirma: ‘A CBF repudia os ataques racistas sofridas pelo jogador Fernandinho e seus familiares. O futebol representa a união das cores, gêneros, culturas e povos. Estamos com vocês. Racistas não passarão’. Ora, se o futebol representa essa união por que é justamente nesses momentos que coletivamente se afirma o quão distantes alguns grupos são dos outros, o quanto alguns são inferiores em relação aos outros? Por que é na torcida coletiva que vazam os ‘viados’, ‘boiolas’, ‘tinha que ser preto’, ‘mulherzinha’?”, questiona.
Todavia, a especialista afirma que episódios como esse não têm aumentado, tão pouco o nível de racismo no país, o que tem acontecido é que com as redes sociais e o advento da Internet isso apenas tem sido mais exposto. “Podemos perceber de maneira menos velada o quão ampla e disseminada são as raízes racistas, cujos xingamentos e discursos de ódio disfarçados por ‘opiniões’ não diferem muito das frases que os senhores de engenho, colonizadores, escravizadores europeus repetiam aos seres humanos sequestrados e que aqui foram escravizados. Não surpreende para quem é negro ou negra esse ódio e racismo disseminado. Episódios como esse são um passo em direção à se fazer mais, falar mais, discutir mais e então estabelecer novas percepções culturais sobre a identidade negra. Tanto entre nós pessoas negras que passamos a nos autoafirmar com maior força elevando a autoestima que há tanto nos foi roubada, quanto ao movimento dinâmico de continuar a pressionar as instituições e percepções dos demais grupos ao reconhecimento positivo de nossa existência. Nós como negros e negras ainda lutamos para sermos reconhecidos como humanos, mas estamos em luta. E nós sabemos que é diária”, completa a cientista social.
O CRIME
Conforme explica o delegado Vinícius Zamó, primeiro é preciso se atentar ao tipo de crime que está sendo cometido, o racismo e injúria racial são crimes distintos dentro do código penal, ambos com penas de um a três anos de prisão, sendo que o racismo propriamente dito é um crime imprescritível. “A conduta racial é geralmente em negar atendimento, restringir acesso a determinado local tendo como motivação a ‘raça’ da pessoa. Quando essa prática passa a ser verbal, configura como outro crime de injúria racial, que é o ato de chamar uma pessoa negra, por exemplo, de ‘macaco’ entre outros nomes pejorativos”, explica o delegado.
“Cheguei a ver os comentários contra o jogador do Brasil que fez aquele gol contra. Isso é crime grave. A pena é de um a três anos, além de multa. Mas é preciso se atentar o que é dito e como é dito, na maioria das vezes o problema está mais em quem ouve do que em quem diz. Há gente maldosa, sim, e já aconteceu aqui dentro da Delegacia de Polícia, onde um advogado chamou um servidor negro de ‘macaco’ com o intuito de ofender. Foi dado voz de prisão, mas a Justiça o absolveu não muito tempo depois do ocorrido”, relata o delegado.
Para Zamó, o brasileiro vive um momento em que falta respeito e tolerância. “Isso gera tudo o que vivemos hoje, como o racismo, por exemplo. A pessoa não pode ver um negro bem sucedido que vai usar a raça dele para cometer um ataque. Isso não pode acontecer, mas acontece e quem comete esse tipo de prática tem que pagar por isso, e vão pagar. Falta de tolerância, esse é o maior problema enfrentado por nós, não apenas contra os negros, mas em todas as esferas”, completa.