Cartas a Cassandra, de Ely Vieitez Lisboa, 2ª edição que acaba de ser lançada pela Funpec Editora, são um romance epistolar, que desassossega e instiga o leitor.
A literatura epistolar no Brasil é pequena, se comparada com a produção em França, Inglaterra e Portugal. Adquire certa importância com Machado e Nabuco, Mário de Andrade e Bandeira, Lobato e Godofredo Rangel, Jackson de Figueiredo e Tristão de Ataíde, mas pouco passa disso e são epístolas propriamente ditas. No caso de Cartas, trata-se de romance, provavelmente único no Brasil e por isso destaca-se pela originalidade e qualidade literárias.
Neste romance sustenta-se a tese de que “toda mulher é Cassandra”. Cassandra, filha de Príamo e Hécuba, irmã de Heitor e Polixena entre dezenove irmãos, foi merecedora de um amor intenso por parte de Apolo, o deus grego da Beleza. Este lhe dá o dom da profecia com o intuito de seduzi-la e a possuir; não conseguindo seu intento, o deus a amaldiçoa, mantém-lhe o dom de profetizar, mas não o de persuadir, daí seus vaticínios sempre caírem em descrédito Na primeira carta – chave para a compreensão de todo o romance – a narradora apresenta a trajetória da Mulher dividida em quatro fases: juventude – momento do sonho; maturidade – momento de aquisição do conhecimento; consciência – momento de transição entre desilusão e decadência; e velhice – momento de encontro da verdade. Até o final, há o desdobramento existencialista destes quatro momentos.
Escrito em primeira pessoa, inevitável no gênero epistolar, a interlocutora da narradora é tratada por ‘tu’ por expressar proximidade entre “eu” (a pessoa que escreve) e “tu” (a pessoa para quem se escreve). A leitora das cartas é uma espécie de alter ego da narradora, como se fosse a narradora escrevendo para si mesma.
Um romance rico de intertextualidade, farto de alusões literárias, cinematográficas e filosóficas, com epígrafes como índices para compreensão da obra.
As últimas cartas, epifania dos tempos derradeiros, resgatam a poesia humana que as anteriores dissecaram e destruíram. O pouco lirismo que resistiu durante as histórias amargas aflora no final. Ao enfrentar, com sabedoria, os fantasmas de sua própria alma, a narradora supera traumas, frustrações e inseguranças, resgata-se o prazer de viver em época de espera e consumação.
Esse romance de expiação e redenção pelo sofrimento está entre as obras mais notáveis de EVL, por sua densidade humana. Quem o ler atestará a assertiva.
WALDOMIRO PEIXOTO: Escritor e crítico literário, autor de Faca Amolada,