TIRO DE GUERRA

Presença centenária do Tiro de Guerra em São Sebastião do Paraíso

Por: Luiz Carlos Pais | Categoria: Entretenimento | 23-07-2017 23:07 | 5520
Foto: Reprodução

 




Há um século, no início do ano de 1917, já estava funcionando em São Sebastião do Paraíso, importante polo da cafeicultura mineira, a Linha de Tiro 502, denominação usada antes da criação dos primeiros Tiros de Guerra. A presença dessa unidade militar na cidade consta no relatório do Ministério da Guerra, publicado em maio do referido ano, assinado pelo marechal José Caetano de Faria, ministro de confiança do então presidente da República Wenceslau Braz. Esse conhecido líder mineiro era profundo conhecedor da região, que funcionou como forte reduto de apoio ao poder exercido por mineiros e paulistas, durante as três últimas décadas da Primeira República.
Para visualizar o cenário da época de criação da mencionada unidade militar, tal como ocorreu em outras cidades, cumpre lembrar que, duas décadas antes, no final do século XIX, Wenceslau Braz havia exercido a magistratura na vizinha cidade de Monte Santo, onde iniciou carreira política como vereador e presidente da câmara municipal. Foi também advogado e travou disputas jurídicas memoráveis no que diz respeito à legalização da posse de grandes fazendas. Ao que tudo indica, na seara nebulosa das relações estabelecidas entre alguns políticos e do grande capital, tal como ocorre nos dias atuais, a atuação do famoso político mineiro deixou ranços históricos na região. O nome do ex-presidente ficou na história regional, devido ao episódio ocorrido na vizinha cidade de Passos, em 1909, conhecido como “Matança do Fórum” ou ainda “Tocaia do Fórum”, quando foram assassinados os coroneis Neca Medeiros e Juca Miranda, líderes do Partido Lavourista, legenda adversária do Partido Republicano Mineiro, ao qual pertencia Wenceslau Braz, que naquele ano, ocupava o cargo de presidente de Minas.
Depois de um século, em 2009, essa história do clima político nada republicano das primeiras décadas do século XX, foi objeto da tese de doutorado defendida pelo professor Antônio Grilo: “Tocaia no Fórum, Violência e Modernidade”. Entretanto, além das questões regionais, a expansão da criação dos Tiros de Guerra nas diversas regiões do País ocorreu no quadro da Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918). Durante os três primeiros anos, o Brasil manteve-se neutro nesse conflito. Mas, essa posição mudou depois que navios mercantes brasileiros foram torpedeados por submarinos alemães. 
Em um desses ataques, um navio carregado com várias toneladas de café brasileiro, que estava sendo exportado para a Europa, foi atacado próximo ao litoral da França, causando a morte de três brasileiros. Houve problemas para os fazendeiros da região que não conseguiram receber o seguro de transporte naval e o episódio causou prejuízo aos cafeicultores mineiros e paulistas. Pressões políticas levaram o presidente a declarar guerra, em 1 de junho de 1917, ao eixo formado pela Alemanha e o Império Austro-Húngaro. Entretanto, foi uma declaração de guerra diferente, pois nenhum soldado brasileiro foi enviado diretamente para o campo de batalha. A participação no conflito foi através do fornecimento de medicamentos, de outros materiais para uso das tropas combatentes, bem como em patrulhas realizadas no Oceano Atlântico. Foi nesse contexto mundial que os moradores da então pacata cidade de São Sebastião do Paraíso testemunharam o início da secular história narrada neste texto.
No contexto das políticas públicas para as Forças Armadas, o funcionamento dos Tiros de Guerra foi objeto do decreto n. 12.708, de 9 de novembro de 1917, que aprovou o regulamento de uma Diretoria Geral vinculada ao Ministério da Guerra, com a tarefa exclusiva de organizar cerca de 600 núcleos então existentes de formação de reservistas no Brasil. Era necessário racionalizar, com base nas técnicas e saberes dos militares, a formação de contingentes de reservistas, ampliando as bases da segurança nacional, bem como proporcionando formação cívica e militar inicial para milhares de jovens. O primeiro artigo do decreto extinguiu a antiga Confederação do Tiro Brasileiro, iniciando então uma nova etapa na história da formação militar de reservistas no Brasil.
Para vencer o desafio de interiorizar a formação militar, a legislação previa a possibilidade de existir cursos de reservistas em ginásios, colégios, academias, escolas profissionais e faculdades, com instrução ministrada por um militar do Exército. Desse modo, assim que foi criada, a Linha de Tiro 502 de São Sebastião do Paraíso funcionou no Ginásio Paraisense, então dirigido pelo professor Georges Aloysius Nixon. Esse estabelecimento foi criado em 1907, pelo pároco Aristóteles Aristodemus Benatti e adquirido pelo município em 1913, devido à transferência do padre para outra cidade. No ano seguinte, para melhorar o ensino secundário ministrado, foi contratado o referido diretor, um educador de ampla formação cultural, natural dos Estados Unidos, e que estava naquele momento exercendo o magistério em Passos.
Quanto ao início das atividades da Linha de Tiro, ou pelo menos quanto aos preparativos para a sua instalação, desde fevereiro de 1916, havia um oficial nomeado para assumir o curso de reservista do Ginásio Paraisense. Essa nomeação foi noticiada no Correio Paulistano, de São Paulo, em 26 de fevereiro de 1916, nos seguintes termos: “Foi nomeado instrutor do Ginásio Paraisense, de São Sebastião do Paraíso, no Estado de Minas Gerais, o Primeiro Tenente do 58º batalhão de caçadores, Eurico Rodrigues Peixoto”. Com base nos documentos acessados, não foi possível verificar quantos anos esse oficial permaneceu na cidade. Faleceu no Rio de Janeiro, em 1945, com a patente de coronel, deixando familiares (filho, genro e neto) que seguiram a mesma carreira no Exército Brasileiro, conforme uma nota da missa do 7º dia do seu falecimento, publicada no Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, em 21 de dezembro de 1945.
No final do ano de 1919, foi nomeado instrutor do curso de reservista do Ginásio Paraisense o sargento Antônio de Oliveira, conforme noticiou o jornal “O Pharol”, de Juiz de Fora. O referido sargento chegou à cidade solteiro e, nos anos seguintes, casou-se com uma jovem de conhecida família paraisense. São indícios que reforçam a presença marcante do Exército Brasileiro, no campo social das instituições locais e na formação de reservistas em São Sebastião do Paraíso. Esse quadro de referência nos ajuda a visualizar o cenário da história secular, cujos traços esparsos são registrados neste texto. Muitos paraisenses, hoje com as mais diferentes idades, rememoram os tempos em que frequentaram o curso de reservista. Eu mesmo, tenho a honra de ter sido membro da turma de reservistas do então Tiro de Guerra número 04-156, vinculado à 4ª Região Militar. Guardo com muito carinho um diploma de Honra ao Mérito, que recebi em 15 de junho de 1974, ao concluir o curso ministrado pelo então primeiro-sargento Ari Luiz de Borba. Tenho na memória a seriedade com que todos os exercícios eram realizados, as noites que passávamos montando guarda na guarita e a garbosidade com os desfiles eram realizados nas datas cívicas.
No relatório de 1917 consta a lista de cidades onde havia cursos de reservistas funcionando em estabelecimentos de ensino. A título de ilustração, havia cursos semelhantes nos seguintes colégios: Salesiano, Brasil e Aldridge (Niteroi), São Vicente de Paulo e Luso Brasileiro (Petrópolis), Anchieta (Friburgo), Teixeira de Freitas (Niteroi), Diocesano São José (Pouso Alegre), Arnaldo (Belo Horizonte), Luso Brasileiro (Varginha), Santo Antônio (São João Del Rei), São Luiz (Silvestre Ferraz), Granbery (Juiz de Fora), Escola de Engenharia de Belo Horizonte, de Farmácia e Odontologia de Alfenas, na Escola de Minas de Ouro Preto e Faculdade de Medicina de Belo Horizonte. Havia também cursos de reservistas em ginásios das seguintes cidades mineiras: Ouro Preto, Leopoldina, Itajubá, São Sebastião do Paraíso, Uberaba, Guaxupé, Cataguases, Muzambinho, Mar de Espanha. 
Para visualizar o contexto local de criação da Linha de Tiro 502, recorremos às atas da sessão da Câmara Municipal de São Sebastião do Paraíso, realizada no dia 13 de janeiro de 1917, quando tomou posse como vereador, na vaga resultante do falecimento de João Moura, o farmacêutico Edmundo Thiago Machado. Na mesma sessão, o Agente Executivo (prefeito), coronel José Francisco de Paula, apresentou relatório das contas do exercício anterior, juntamente com os documentos que foram encaminhados à comissão de finanças, para a devida aprovação. Passados alguns dias, em 26 de fevereiro, foi aprovado o contrato celebrado com o senhor Ozório Marques, visando construir uma linha regular de automóveis para transportar passageiros entre São Sebastião do Paraíso e São Tomás de Aquino. 
A mesma câmara aprovou parecer da comissão de finanças, mandando auxiliar o doutor Oliveira Martins, que pretendia estabelecer uma casa de saúde na cidade. O vereador Antônio Alves de Figueiredo apresentou moção, aprovada por unanimidade pelos vereadores, com apoio do diretório do Partido Republicano Mineiro local, então chefiado pelo coronel José Cândido Pinto Ribeiro, apresentando um protesto contra adversários que estavam, supostamente, atacando a honra do então presidente de Minas Delfim Moreira. 
Em relatório de maio de 1918 consta a existência de quase 600 sociedades de Tiro de Guerra no Brasil. Cada sociedade recebia um número sequencial de identificação. Desse modo, até o final do ano de 1917, prevalecia a seguinte numeração: Juiz de Fora (17), Belo Horizonte (52), São Sebastião do Paraíso (502), Guaxupé (543), entre outros. Entretanto, estava em curso a criação de sociedades em várias outras cidades. Por exemplo, ainda em meados de 1918, foi noticiada a criação da Linha de Tiro 618, em Aiuruoca, MG, por incorporação de uma sociedade já existente. 
Em meados de 1918, Hermantino Soares de Paula, capitão da Guarda Nacional de São Sebastião do Paraíso, foi nomeado para o cargo de secretário local da Junta de Alistamento Militar. Essa nomeação visava atender a nova legislação criada no ano anterior para regulamentar o funcionamento local do Tiro de Guerra. Cumpre observar quer no momento de publicação da notícia, no jornal “O Paiz”, do Rio de Janeiro, em 23 de julho de 1918, outros capitães da Guarda Nacional foram nomeados para ocupar o mesmo cargo em outras cidades de Minas Gerais. 
Ainda quanto ao início do serviço militar em Paraíso, conforme as atas da Câmara Municipal de 1918, destacamos as seguintes deliberações: aprovação das contas da gestão municipal; aprovação do contrato assinado com o professor Nixon para dirigir do Ginásio Paraisense, devendo esse educador se entender com o oficial do Exército para o bom funcionamento do curso de reservista. Foi ainda deliberada a solicitação do pedido da vinda de bancas examinadoras federais para os alunos do estabelecimento, bem como a concessão de uma verba para auxílio na manutenção da Linha de Tiro 502, que estava prestando relevantes serviços à cidade. Nessa mesma época, como ficou no imaginário cultural da cidade, foi constituída a Banda 502, uma corporação musical que animava diferentes eventos sociais da cidade. A princípio, estava formada com membros da Linha de Tira, com a participação de outros músicos paraisenses, entre os quais o lendário maestro Chico Penha (Francisco Gil Penha), que, nos anos seguintes, deixaria seu nome na história da música instrumental brasileira. 
Logo em seguida, houve outra deliberação importante da câmara municipal, que foi a aprovação para a construção do primeiro prédio do Ginásio Paraisense (parte térrea). Quando o prédio foi inaugurado, duas salas foram cedidas para o funcionamento mais adequado da Linha de Tiro 502. Foi quando, em 3 de dezembro de 1919, o 2º sargento Antônio de Oliveira, foi nomeado e assumiu o cargo de instrutor do curso de reservista militar do Ginásio Paraisense, sendo sua nomeação assinada pelo general comandante da 4ª Região Militar de Juiz de Fora, conforme noticiou o jornal “O Pharol”, da referida cidade mineira, em edição do dia 7 de dezembro de 1919. Três anos após, e, 1922, o advogado José de Souza Soares publicou seu livro intitulado “Notícia histórica de São Sebastião do Paraíso”, no qual está reproduzida uma fotografia das salas em que funcionava o curso de reservista do histórico curso ginasial da cidade. 
No relatório assinado pelo ministro Calógeras, apresentado ao governo de Epitácio Pessoa, em 1921, consta a relação das 659 Sociedades de Tiro de Guerra, existentes no Brasil. Em Juiz de Fora, funcionava a Linha de Tiro 17, assim como em Lavras, Caxambu, Sete Lagoas, Barbacena, Alfenas, entre outras cidades. Nesse mesmo documento, consta o funcionamento a Linha de Tiro 502, de São Sebastião do Paraíso, quando as instruções já estavam sendo ministradas nas dependências do novo prédio do Ginásio Paraisense.
Em 4 de novembro de 1926, foi publicado no jornal A Noite, do Rio de Janeiro, que os reservistas do Ginásio Paraisense, sob a direção do professor Tabajara Pedroso, haviam prestado o juramento à bandeira, em solenidade presidida por Otávio Peres, agente executivo, contando com a presença do vereador João Vilela de Figueiredo e do pároco Monsenhor José Felipe da Silveira, que discursou para exaltar as perspectivas de vida dos jovens cidadãos, que, além de estar recebendo formação humanística, tinham condições de aprender as primeiras lições militares. Em nome dos estudantes concluintes do curso, discursou o jovem Lauriston Pereira Lima.
Na mesma solenidade foram anunciados os agradecimentos das autoridades locais à Banca Examinadora, nomeada pelo governo para aplicar os exames prestados pelos reservistas, a qual era constituída pelos oficiais do Exército: Walter de Souza Delmon, Eurico Barbosa e Rosalvo Guimarães, todos com a patente de tenente. Nos anos seguintes, outro ilustre oficial que visitou São Sebastião do Paraíso, compondo bancas examinadoras do Tiro de Guerra, foi Arthur da Costa e Silva, que na década de 1960, ocuparia a presidência da República, no contexto dos Governo Militar. A todos os protagonistas mencionados nesta crônica, nossas reverências históricas, em nome da saudosa terra natal de hoje e de todos os tempos!