DOS LEITORES

A Finitude

Por: Redação | Categoria: Do leitor | 12-08-2020 06:55 | 976
Foto: Reprodução

A família nasceu do casamento de uma mineira com um baiano. A mineira tinha ascendência indígena. Os filhos desta união cresceram às margens do caudaloso Rio Santana. O casal morreu, os filhos seguiram seus caminhos, constituíram suas famílias, criaram seus filhos. Assim foi passando o tempo.

Um certo dia Hermenegilda já com quase 80 anos levou a sobrinha e a irmã caçula para visitarem o lugar onde nasceram. Foi muito divertido a sobrinha com seu carro novo era inexperiente para dirigir na área rural, se aventurou nas Montanhas Mineiras e comeu o pó da estrada.

Foi contagiada por uma imensa alegria, pois estava louca para conhecer o rio caudaloso, a fazenda, o gado. Guiadas pela Hermenegilda chegaram ao seu destino. O rio caudaloso: um riacho, o gado não existia e no lugar café. O que chamou a atenção foi uma flor Copo-de-leite plantada no chão!

Foi um dia para ficar na história. De volta à cidade, lá estava a vaidosa Dona Florinda, com seus bobes cobertos por lindos lenços de seda, as unhas pintadas de vermelho, pronta para a missa e depois levar a comunhão aos enfermos. Hermenegilda e Dona Florinda não se entendiam e tinham discussões hilariantes. As duas tinham personalidade forte e não perdiam a oportunidade de boa argumentação.

A caçulinha era minada, era rainha, servida pelas duas irmãs que faziam questão de desfilarem com ela pela cidade e apresentá-la para os conhecidos da família. Os doces não faltavam à mesa, as quitandas eram feitas à espera da caçula com sua prole e os agregados. A bala de coco a especialidade de Hermenegilda, as sobrinhas tentaram aprender, mas somente uma delas disse que aprendeu.

A Dona Florinda, mais moderna, no auge da velhice, havia se especializado em comprar os doces em compotas, mas não dizia quem era o fornecedor, como também dava as receitas erradas assim garantia o segredo dos seus quitutes.

Os natais maravilhosos, embora chuvosos. A congada um acontecimento, as brincadeiras com primos só alegria. A caçula vivia no Estado de São Paulo trabalhava com afinco para poder prover o necessário para sua prole e retornar à sua cidade natal, conhecida como a Cidade dos Ipês.

A acolhida mineira era excepcional. A Hermenegilda foi acometida de câncer e foi para o céu. Em meio à pandemia do corona vírus Dona Florinda foi encontrada morta. Comoção geral. Ninguém sabe o que aconteceu, como diz a canção: “Estátuas e cofres/ E paredes pintadas/ ninguém sabe o que aconteceu/ .../Nada fácil de entender”.

Velório não pode acontecer, o Rito das Exéquias com os quatro momentos principais: acolhimento da comunidade – com uma palavra de consolação, as palavras de vida eterna, a liturgia da palavra e sacrifício eucarístico, também não ocorreu.

A defunta sempre participou da igreja, que tem como padroeira Nossa Senhora de Sion. Em de 6 agosto de 2020, naquela gelada manhã de inverno, com o céu azul sem nenhuma nuvem, a terra árida e o vento soprando silenciosamente a Dona Florinda voltou ao pó! Não levou nada.

Coube à filha da Caçula elevar a Deus a oração, pedindo a intercessão de Nossa Senhora.

Superadas as diferenças das crenças religiosas os dez familiares, autorizados pelos vigilantes do cemitério, prestaram sua última homenagem à irreverente Dona Florinda.

O mistério paira no ar, qual foi a causa da morte? Quais foram as circunstâncias? A casa está vazia, restam os insetos e os roedores. O silêncio da casa permite ouvir o que não foi dito. A escuridão é iluminada pelo luar frio e sombrio que desvenda o real interesse pela posse do que é tangível em detrimento ao intangível.

O que é a vida? O que é o amor ao próximo? O que ser cristão? Agora a única certeza: a finitude! A parábola dos talentos é oportuna, cabe a cada um a partir de dons de Deus zelar pelos talentos recebidos e multiplicá-los. Espera-se que o legado da fé, da autenticidade e do amor destas irmãs se perpetuem na vida daqueles que ficaram. Que a justiça seja feita, que Deus onipotente, onipresente e onisciente traga luz, revele a verdade das circunstâncias da causa morte da Dona Florinda, assim a Caçula terá paz. Assinado pela Motorista.
Josiane Aparecida da Silva