ENTRETANTO

As joias de Michele

Por: Renato Zupo | Categoria: Justiça | 08-03-2023 13:27 | 1696
Foto: Arquivo

A notícia é essa: um membro do alto escalão do governo Bolsonaro trouxe do mundo árabe um presente inusitado e caríssimo para a então primeira dama Michele, um colar com diamantes, brilhantes e ouro, avaliado em milhões de dólares. Não passou pela alfândega e foi retido no aguardo do pagamento de impostos altíssimos e o ex-presidente teria tentado incansavelmente resgatá-lo sem arcar com os tributos devidos. O colar iria ser leiloado conforme determina a lei, mas porque agora pode configurar a materialidade de crime, será por enquanto poupado.

Vamos lá. Materialidade do crime é o vestígio físico do seu cometimento. Houve homicídio? Eis aqui o cadáver. É tráfico de drogas? Eis a droga. Esta é a materialidade, entenderam?

Quanto à retenção do colar, qualquer advogado tributarista sabe que a origem do dever de pagar tributos se chama fato gerador, e a doação não é um fato gerador. O colar de Michele foi um presente exótico e caríssimo, mas ainda assim um presente. Não é fato gerador tributário porque não equivale a transferência onerosa de patrimônio – e a chave para entender a questão está no “onerosa”.

As tentativas do então presidente para desembaraçar o presente se tratam, quando muito, do exercício regular de um Direito. Veja-se que não deu carteirada e não tentou impor sua vontade – isso é bastante importante, e absolutamente ignorado por seus críticos. Aliás, em toda a história da República, pode-se dizer tranquilamente que Jair Bolsonaro foi um dos presidentes que menos mandou, mais teve decisões questionadas e descumpridas, e ainda assim não apelou para a força do cargo ou para as armas.

Uma discussão mais interessante, e bem mais profunda, daquele tipo que alguns órgãos de mídia atuais evitam entrar justamente porque intrincada, é a seguinte: o presente foi para a Dona Michele, enquanto primeira dama, e portanto pertence ao governo brasileiro, ou é personalíssimo para a Dona Michele, e aí ela leva com  ela quando  sai do Palácio do Planalto?

A discussão surgiu no famoso episódio do sítio de Atibaia, quando encontraram inúmeros presentes dados ao presidente Lula naquele bucólico local, mimos de governos passados dados por outros chefes de Estado. Perguntou-se na oportunidade se os presentes eram para Lula ou para a Presidência da República. Como resposta, editou-se lei regulamentando a matéria: todo presente até um salário mínimo era do mandatário, o restante pertenceria à “coroa”.

Coisa de republiqueta tupiniquim terceiro-mundista. O presente é para o líder e pronto acabou. Morei na cidade de Pedra Azul, no Norte de Minas, por três anos. Lendária por lá e verídica a história de uma enorme água marinha encontrada em um garimpo pelo então deputado federal João de Almeida, pelos idos da década de 1950. Ele a deu de presente ao ditador Getúlio Vargas e, este, à Rainha Elizabeth II então recentemente coroada. A joia esteve com a monarca  até sua morte. E para além dela, entrou para a história. 

APOSENTADORIA COMPULSÓRIA
O desembargador paulista Eduardo Siqueira foi aposentado compulsoriamente porque humilhou a um fiscal sanitário que o multava por andar sem máscara no auge da pandemia durante uma caminhada na praia, em Santos/SP.

O povo critica a punição de aposentadoria compulsória, que considera prêmio para servidores públicos relapsos ou corruptos, que deveriam é ser exonerados, demitidos e ponto final.

É assim e não é assim – tudo é relativo no mundo do Direito. Há várias modalidades de punição administrativa disciplinar para servidores públicos infratores, da advertência à demissão à bem do serviço público. A aposentadoria compulsória é das mais graves, logo abaixo da demissão, e está longe de ser um “prêmio”, porque é proporcional ao tempo de serviço e geralmente importa em relevante diminuição do subsídio, do salário do servidor punido. A própria aposentadoria já repercute negativamente no bolso do aposentado, quando é pela porta dos fundos, como no caso, mais ainda.

Seria punição branda demais? Utilizar o argumento popularesco de que, para qualquer transgressão a pena é demissão, é fazer uso de um sistema punitivo em que só exista pena capital, pena máxima, sem punições intermediárias – é repugnante, injusto e inconstitucional isso. Há excelentes servidores com um longo histórico de bons serviços prestados ao governo e que, por conta de um deslize, estariam no olho da rua. E fere o princípio constitucional da proporcionalidade, colocando no mesmo balaio, por exemplo, um juiz que excede em poderes dando carteirada, de um outro que venda sentenças.

Voltando ao caso de Siqueira: nada justifica sua atitude, mas temos que convir que juízes são seres humanos normais, com dias bons e ruins. Ele estava em um dia péssimo e usou o cargo e a toga para humilhar a outro servidor púbico, ao que parece e a mídia mostrou. Também se disse que possui um histórico de ocorrências em que passa do ponto quando o assunto é usar a jurisdição para desopilar o fígado, brigando, discutindo, bravateando, inclusive com colegas. Não conheço o processo, mas acredito piamente no direito que todos possuímos ao devido processo legal, uma garantia constitucional que o ministro Gilmar Mendes fez valer para anular a um recurso do Ministério Público que condenava Siqueira. A defesa do desembargador, recém constituída, não teria tido oportunidade de se manifestar nos autos antes do julgamento do recurso – aí, nesse caso, como dizia Arnaldo César Coelho, “a regra é clara”.

O dito pelo não dito:
“Três coisas devem ser feitas por um juiz: ouvir atentamente, considerar sobriamente e decidir imparcialmente”. (Sócrates,  filósofo grego).

RENATO ZUPO – Magistrado - (Juiz de Direito na Comarca de Araxá), Escritor