Tio Flávio
A primeira vez que eu viajei para a cidade de São Paulo, parecia que eu estava desembarcando em Nárnia, a famosa obra do professor C. S. Lewis. Fugindo de uma governanta mal-humorada, quatro meninos entram num mundo sombrio, cinza, que supostamente esteve ali o tempo todo, escondido dentro de um guarda-roupas do livro "O leão, a feiticeira e o guarda-roupa". Ao entrarem naquele artefato de madeira, que era uma espécie de amuleto, um novo mundo se apresentava.
Meu primeiro dia em São Paulo foi bem estranho, pois o clima da cidade parecia camaleônico, com "sol forte" pela manhã, garoa e frio pela tarde e uma noite agradável. Parece que até a natureza estava tentando me mostrar que é possível viver as diferenças num só dia, nos permitindo conhecer a beleza e a angústia de cada tempo.
Em Santa Luzia, Maceió e Belo Horizonte, cidades que eu já havia residido, nunca tinha visto uma mistura de perfis de pessoas como vi na capital paulista. Uns jovens descendo a rua Augusta com cabelos avermelhados, outros azulados, outros com mechas de um lado e raspados de outro. Isso era na década de 1990 e me assustava, já que eu não estava acostumado a um desfile tão "desigual".
Na avenida Paulista, ciclistas, skatistas, pedestres e motoristas de veículos e motos dividiam o mesmo cenário. Artistas faziam suas performances, mas não eram tão numerosos como eu veria anos depois em "Las Ramblas", um dos lugares mais conhecidos e frequentados por turistas em Barcelona.
Ainda na famosa avenida de São Paulo eu via, vacilante, rapazes andando com unhas pintadas, grupos de meninas e meninos vestidos e maquiados de preto. Pedintes se misturavam a pessoas com roupas caras, que saiam de lojas ou bancos. Era a Torre de Babel cultural, no sentido eclético desta referência.
Na Galeria do Rock, um público mais homogêneo esteticamente. Nas ruas, pessoas de estilos diferentes passavam umas pelas outras sem voltarem os olhares para conferirem a roupa, o corte de cabelo ou a maneira de ser e agir do outro. Para quem vem do interior, que as pessoas têm um hábito de cuidar mais do que se passa da janela de suas casas para fora, São Paulo não tinha explicação.
Toda vez que penso nesta experiência, lembro como foi impactante e importante sair do meu local, seguro e confortável, mas que acomoda também.
O nosso cérebro precisa de novas referências, senão ele acha que o mundo todo é só azul, por exemplo. Quando uma pessoa vive num mundo onde todos são da cor cinza, até o preto já causa estranheza, imagine o amarelo, o vermelho e o verde. Pense, então, no furta-cor. O fenômeno que leva o nome de iridescência é aquele que, como numa bolha de sabão, cuja superfície é irregular e o ângulo de reflexão dos raios é variável, produz várias cores. Daí o efeito de arco-íris, que muda de acordo com a posição de quem observa. Sim, isso mesmo, e vale ressaltar: a mudança das cores do objeto observado se dá pelo ponto de vista adotado por quem observa.
Tudo isto é para dizer o quanto eu fico sensibilizado ao saber que algumas pessoas têm uma dificuldade muito grande para reconhecer o diferente, devido a vários fatores, inclusive os culturais. Um pai de uma criança de quatro anos me disse que quando seu filho nasceu e foi diagnosticado com o Transtorno do Espectro Autista, ele só pensava em quando ele e a esposa morressem, como ficaria o filho, com quem ficaria o filho, se o mundo estaria preparado para ele, se ele se encaixaria no mundo. "Teve um momento, logo após o diagnóstico, que eu cheguei a torcer para que meu filho morresse antes de nós", disse este amigo.
Um dia desses vi um vídeo nas redes sociais do meu amigo David César, que nasceu com a síndrome de Hanhart, que tem como uma das características o atrofiamento dos braços e das pernas. David anda em uma cadeira de rodas, de maneira independente, e tem apenas um "toquinho" (nome dado por ele próprio) como braço e as pernas não chegam aos joelhos. Um dia, atravessando a rua, encontra com uma criança e uma mulher, supostamente mãe daquele menino. A criança olha para o David, se assusta e o chama de monstro.
No mesmo dia, um rapaz olha para o David e o parabeniza, pois apesar de ele estar "naquela situação", ele era um jovem bem feliz. Apesar de parecerem situações diferentes, elas carregam uma questão: não somos educados para o diferente.
O cabelo de uns incomoda, a orientação sexual de outros é motivo de chacota e violência, a cor da pele torna-se alvo (leia O avesso da pele, do Jeferson Tenório), uma mulher que não tem filhos vira motivo de repreensões, um indígena não pode sair da aldeia (tem um episódio na série Segunda Chamada que aborda isso), ser velho é ser descartável, tendo inevitavelmente que ir parar na "prateleira" do esquecimento e da solidão. Tudo isso é um composto de algo chamado ignorância, que a falta da educação, que inclui uma limitação cultural-social, ainda permite que se reproduza tal qual os "Gremlins", mas em ambientes de pouca "luz". É importante atentar que ao falar de educação, não estou prendendo-a ao ambiente escolar, muito pelo contrário. Trago-a para uma corresponsabilidade.
Tio Flávio Palestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural
(Hoje em Dia 08/09/2023)