OPINIÃO

Se alguém fala mal de você, há quem defenda?

Por: . | Categoria: Do leitor | 27-09-2023 00:05 | 270
Foto: Arquivo

Tio Flávio

Rapidamente os donos de uma escola infantil foram condenados pelo tribunal da mídia. Os veículos de comunicação foram para a porta daquela instituição e de lá falavam o que achavam, sem provas, assumindo o papel de inquisidores. 

Naquela época, em 1994, não existiam por aqui as redes sociais, que no Brasil chegariam só em 2002, via Fotolog. Assim, os veículos de comunicação, e em destaque as redes televisivas, tinham importante presença nos lares brasileiros, àquela época reunindo famílias em torno de um aparelho eletrônico. A escola foi apedrejada, invadida, pichada, depredada. Os proprietários e um casal de pais, que um delegado apontou como os responsáveis pelo abuso infantil, foram perseguidos, tiveram suas casas violadas, seus filhos sofreram ataques.

Lembro-me bem deste caso da Escola Base, pois quando comecei a dar aulas nos cursos de comunicação, sempre o abordava para discutir os excessos dos veículos de comunicação; a busca desenfreada por noticiar algo antes dos outros, o tal furo de reportagem; a falta de cuidado com a apuração dos fatos que, uma vez divulgados, se tornam uma avalanche na vida de muita gente. 

A busca pelos holofotes; o interesse político; a fúria das pessoas, num desejo de vingança que beira a um crime verdadeiro foram o cenário recorrente deste caso.

Só que os três casais acusados de cometerem atrocidade foram inocentados. Uma teia de interesses, até então escusos, fez com que a situação chegasse ao infeliz patamar de mentiras e falsas acusações. Mas, já não tinha mais volta: depressão, síndrome do pânico, perda da credibilidade e das fontes de sustento, medo, reclusão e a permanente dúvida dos outros em relação à sua inocência seriam a nova vida daquelas pessoas, expostas pela cobiça de alguém da polícia e pela irresponsabilidade midiática, que alimentavam uma fome de vingança vinda de um senso de justiça de pessoas que se mobilizam em casos midiáticos, mas que às vezes são incapazes de se moverem por questões sociais de menor escala e tão próximas de si próprios.

O caso da Escola Base deveria ter-nos ensinado muito mais, mas alguns profissionais esqueceram, ou preferiram fingir esquecimento, tal qual muitos veículos de comunicação. E pela manchete, furo, novidade e sensacionalismo desmedidos a história vai se repetindo, somada a um novo cenário: qualquer pessoa que tenha seguidores, virou também a mídia e, com isso, foi-lhe outorgado o poder justo da verdade ou o destruidor provocado pela mentira, sendo que muitos, por visibilidade, “curtidas”, fama e dinheiro querem mais é promoção e evidência do que justiça.

Com bordões e palavras de ordem, temos os novos justiceiros, o novo cangaço virtual. Um dia desses, vi uma chamada num grande jornal, que trazia a opinião de um ex-cantor sobre o atropelamento envolvendo um jovem ator no Rio de Janeiro. O acusador dizia que o ator estava drogado, mesmo que os exames da polícia não comprovassem isso. O ex-cantor, conhecido por sua imersão no mundo das drogas em um período da sua vida, trazia uma fala de que se fosse ele ali, naquela situação, ninguém o defenderia, como a mídia estava fazendo com o ator atropelado. Esta matéria, dando voz a alguém que não dizia nada comprovadamente, tinha na chamada principal uma afirmação de que o ator estaria drogado. 

O que me incomoda não é um coadjuvante querer ser protagonista na tragédia alheia, mas alguém dar a ele espaço apenas para ganhar engajamento, termo que nem de perto representa fidelidade. Engajamento não é fidelidade, mas cria, difunde e atesta narrativas.

A pergunta que eu sempre faço é: se alguém te acusasse de alguma coisa, sabedores que somos de que o Chapolin Colorado não apareceria, mas usando o bordão da sua série, “oh, e agora, quem poderá me defender?”, a dúvida que fica é: além de um advogado pago para isso, há pessoas que te conhecem de verdade e que sairiam em sua defesa? 

Muita gente vem com o discurso: “nunca desconfiei de nada”, mas depois mudam para “ah, pensando bem, eu o vi distribuindo bala para crianças, deve ser pedófilo” ou “ele olhava para as mulheres de maneira estranha, agora que eu estou ligando as coisas” ou ainda “ele andava meio estressado com a esposa, mas nunca pensei que ele pudesse chegar às vias de fato”.

Quem não te conhece, vai replicar o que a mídia fala, pois as pessoas, em alguns casos, estão em busca de uma vingança que elas mesmas nem sabem do que se trata. Mas, e quem te conhece, vai desconfiar do que você fez, vai fingir que não te conhece ou virá em sua defesa?

Há época do caso da Escola Base eu dizia aos meus alunos: a informação é como se subíssemos ao topo do prédio mais alto da avenida mais movimentada de Belo Horizonte e de lá jogássemos confetes de papéis em todas as direções. Descendo do prédio, ao tentar limpar a sujeira, cataríamos alguns pedacinhos de papel, mas boa parte foi imediatamente levada pelo vento, pelos pedestres, pela ação dos carros, espalhando a sujeira para além do entorno do prédio.

No caso da ação das mídias, é como se um saco de confetes de papel se transformasse numa tonelada deles jogada ao vento.

(Fonte: Hoje em Dia 22/09/2023).
Tio Flávio Palestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.