OPINIÃO

Vida que segue!

Por: . | Categoria: Do leitor | 23-12-2023 00:15 | 59
Foto: Arquivo

Tio Flávio

Um dia eu li um texto do Alex Bretas que dizia muito sobre o nosso culto à persistência, em sua valorização extremista e que vende a ideia de que a gente não pode desistir jamais. A reflexão ia bem além. Pelo que eu entendi, nós nos cobramos para sermos persistentes em tudo, desde questões pessoais às profissionais, e que há algumas coisas na vida que temos que aprender a desistir.

Sempre falo nas minhas palestras sobre um provérbio africano que li e guardei: "Exú matou um pássaro ontem com a pedra que jogou só hoje". Fiquei pensando muitas vezes nesta frase, que vi pela primeira vez no filme "Amarelo", do Emicida. Achei lindo o que ela dizia, mas não a havia compreendido, até que um dia participei de uma aula com o professor Renato Noguera, um "senhor" doutor em Cultura Africana, que explicou nitidamente o que ela representa.

O pássaro de ontem são as questões que a gente não deu conta de resolver; São ciclos que não estão fechados, concluídos; São aquelas portinhas entreabertas que por preguiça, medo, comodismo, ou sabe-se lá o que mais, não voltamos para fechar. A nossa dependência emocional, mental, social daquela portinha ainda aberta é tão grande, que a fechar é quase que ceifar uma parte de nós.

Mas, a maturidade há de chegar, trazendo um olhar mais amplo daquilo que antes era possível enxergar apenas por uma fresta. Isso é quase que uma "alegoria da caverna", de Platão. Enquanto estamos presos ao olhar pela fresta, é aquela imagem que conhecemos e achamos o máximo. A partir do momento em que se derruba abruptamente a parede e a luz entra, pode haver uma liberdade, não antes de experimentar uma certa estranheza: é muita luz de uma só vez, que pode até nos cegar.

Por isso parece que a vida nos conduz a ir tirando as pedrinhas para que as frestas se ampliem. Mas, nem sempre é assim que acontece. Às vezes, sem que a gente espere, é a própria vida quem escolhe, e não nós, derrubar de vez a grande muralha. Aí, até o que é luz, dói.

A pedra lançada hoje é a maturidade de entender o que são os "pássaros" que devem ser eliminados num passado que nos pertence, mas que tem questões que merecem ser encerradas e não persistirem como chagas ardentes.

Viver é, de fato, muito complexo, por mais que a gente fale que a felicidade pode ser encontrada nas simples coisas. E nem fui eu quem disse isso, foi Guimarães Rosa. Para viver não há fórmulas e nem manuais, uma coisa que eu falo que faria em determinada situação já não se sustenta quando a situação se torna real.

A gente vai observando, criando referências, sentindo e buscando entender quais são os melhores caminhos, mas tendo a certeza que algumas coisas não darão certo, outras vão nos doer demais, nem tudo que a gente quer será possível e quem ninguém nesta vida é modelo de perfeição.

Muita gente cria e nutre culpas que vêm de questões culturais, que em alguns casos têm início lá na infância, mas que precisam ser encaradas. Aí é que entra a maturidade, no sentido de já ter reunido forças e conhecimentos para tomar atitudes, para se movimentar, para sair daquele lugar.

Após sofrer um acidente num ônibus que ia de Belo Horizonte para São Paulo, com vítimas fatais, comecei a perceber o tanto de gente que passa por tragédias e tem naquela situação o nascimento dos seus traumas, ou que é dali que eles se amplificam, em muitos casos. Fiquei pensando bastante sobre o sopro da vida, termo que usamos em discurso, principalmente quando alguém jovem morre, mas que logo depois o moinho do tempo nos tritura e a gente já esquece. Sim, sei que não temos que viver pensando que amanhã pode ser nosso último dia, ou hoje mesmo, mas dar um sentido à vida, desde que isso não seja uma cobrança que nos deixa inertes e nos impede de viver de verdade.

Não sei se a gente tem que aprender alguma coisa com tudo que nos acontece. Talvez as coisas só aconteçam e pronto. Porém, tendo passado por um momento de muito impacto pessoal, fiz um pacto comigo mesmo, que compreende a importância de fechar alguns ciclos, concluí-los mesmo, para que a vida possa fluir com mais leveza e menos amarras. Assim, pessoas e coisas tóxicas não precisam nos acompanhar, por mais que se possa achar que elas são necessárias e que não conseguimos viver sem a sua companhia. E é necessário entender que as picuinhas nos apequenam. Mas, mais do que isso, elas são do tamanho que nós nos assumimos pra gente e diante do outro.

Que cada encontro possa ser celebrado, quando ele for realmente importante. E que a vida siga, até onde ela tem que ir, mas que a gente a ajude nesse percurso.

Tio Flávio Palestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural. (Hoje em Dia - 22/12/2023)