INCLUSÃO e DIGNIDADE

Casa Terapêutica promove inclusão e dignidade em Paraíso

Residência devolve cidadania e autonomia a pessoas com histórico de internações prolongadas, reforçando a importância da saúde mental
Por: Ralph Diniz | Categoria: Saúde | 18-01-2025 05:55 | 250
Ambiente de lar promove sensação de pertencimento nos moradores
Ambiente de lar promove sensação de pertencimento nos moradores Foto: Divulgação

A rotina de uma casa onde moram cinco pessoas, com idades entre 30 e 60 anos, em São Sebastião do Paraíso, pode parecer algo simples, mas a história por trás dessas vidas é marcada por recomeços, desafios e muita esperança. A Casa Terapêutica se dedica a acolher moradores que passaram anos em hospitais psiquiátricos e agora redescobrem o que é ter um lar de verdade.

Neste mês, a campanha do “Janeiro Branco” ressalta a importância da saúde mental e a Residência mostra que a reinserção social é possível, necessária e urgente para muitas pessoas em situação de vulnerabilidade. Localizada na rua Duque de Caxias, no Jardim Planalto, e coordenada por Natália Andrade, a casa se integra ao bairro de maneira discreta, sem placas de identificação ou qualquer aparência de hospital ou instituição formal. “Não é um internato, não é um hospital, é um lar”, diz Natália. O espaço lembra uma típica residência familiar, com cozinha, sala de estar, quartos individuais e até momentos de conversa na varanda, onde os moradores podem relaxar e viver o dia a dia com liberdade. Diferentemente de um ambiente manicomial, onde as pessoas ficavam segregadas por longos períodos, essa moradia oferece a oportunidade de cada um exercer sua cidadania de forma plena. A proposta, segundo Natália, “é devolver a essas pessoas o direito à vida em comunidade, ao convívio social e às escolhas individuais”.

A Casa Terapêutica faz parte de um serviço instituído em portaria do Ministério da Saúde no ano 2000, período em que surgiu a primeira normatização para habilitar residências terapêuticas como substitutas dos hospitais psiquiátricos tradicionais. “A residência terapêutica é um marco dentro da reforma psiquiátrica e da luta antimanicomial”, explica Natália. Para ela, o Brasil ainda carrega marcas profundas do passado, em que pessoas com transtornos mentais eram consideradas um incômodo para a sociedade e simplesmente ‘depositadas’ em locais afastados, sem contato com familiares ou garantia de direitos básicos. A coordenadora enfatiza que, por muito tempo, “elas foram retiradas do convívio social e esquecidas, sem acesso a cuidados dignos”.

Segundo Natália, o histórico de exclusão foi tão grave que, até poucas décadas atrás, “muitos hospitais psiquiátricos eram verdadeiros depósitos de gente”. A reforma psiquiátrica, iniciada na década de 1980 e avançada ao longo das décadas seguintes, buscou justamente romper com esse modelo. De acordo com a política nacional de saúde mental, o hospital não deve ser lugar de moradia; as pessoas precisam de condições de convivência em sociedade. Nesse contexto, as residências terapêuticas surgem para acolher quem ficou internado por mais de dois anos, oferecendo atendimento voltado à inclusão social, à autonomia e a uma vida comunitária mais plena. “Eles precisam de um lar, não de muros que os isolem”, ressalta.

Com essa nova perspectiva, São Sebastião do Paraíso abriga hoje uma casa que recebe cinco moradores. A capacidade pode chegar a oito pessoas, mas a ideia é manter um número reduzido justamente para não caracterizar uma instituição de grande porte, mas sim uma família ampliada. “Quando a gente passa da porta para dentro, é como entrar na casa de qualquer pessoa. Tem sofá, televisão, comida na geladeira e uma convivência afetiva”, descreve Natália. A coordenadora se orgulha ao contar que os moradores se sentem donos do lugar e gostam de receber visitas. “Eles oferecem café, perguntam se a gente já almoçou, convidam para conhecer os cômodos”, diz. Esse acolhimento caloroso mostra o quanto eles se reconhecem naquele espaço.

O trabalho da Casa Terapêutica envolve oito profissionais, entre cuidadores, técnicas de enfermagem, cozinheira, auxiliares de limpeza e uma nutricionista. “São plantões de 12 por 36 horas, porque o serviço funciona 24 horas por dia. Assim garantimos que os moradores tenham sempre alguém por perto para auxiliar em tudo que for necessário”, explica Natália. As medicações prescritas pelos psiquiatras do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) são administradas pelas técnicas de enfermagem, mas fora essa parte, tudo funciona como em qualquer lar. “Não temos placas, não temos grades, não se pode ter aquela cara de hospital. É, sim, uma casa, e os moradores têm autonomia para usar a cozinha, sair, passear, fazer as compras no supermercado, se quiserem voltar a estudar, trabalhar... as possibilidades são enormes”.

Natália reforça que os recursos principais vêm do município, com financiamento compartilhado entre Prefeitura, Estado e União, já que o serviço é habilitado pela portaria ministerial. A alimentação, fraldas, material de higiene e custos de manutenção são custeados pela gestão pública. Já as despesas pessoais, como roupas, sapatos e algum lazer específico, podem ser pagas com os benefícios que cada morador recebe, como o Benefício de Prestação Continuada (BPC). “São direitos que essas pessoas têm, pois muitas delas não podem trabalhar, mas precisam sobreviver com dignidade”, diz a coordenadora.

Por falar em participação social, Natália faz questão de inserir os moradores em atividades da comunidade. “Se tem evento na praça, a gente vai. Se tem festa no bairro, a gente participa. Recentemente, organizamos uma Festa Junina aqui na rua, e foi maravilhoso ver a integração entre a vizinhança e os moradores. Tivemos mais de 200 pessoas”. Para ela, quanto mais a sociedade conviver com essas pessoas, menos preconceito existir. “A nossa luta é para que todos enxerguem que elas podem e devem ter uma vida comum, com acesso a espaços públicos, lazer, cultura, trabalho e qualquer outro direito civil”.

A residência terapêutica, portanto, não apenas acolhe, mas também repara um erro histórico. “É um ato intencional de reparação histórica, porque o que fizemos com essas pessoas durante décadas foi cruel. Retirá-las da sociedade como se fossem um problema e descartá-las não é a solução. Hoje, felizmente, conseguimos dar passos importantes para devolver a elas o que nunca deveria ter sido tirado: o direito de viver em comunidade”, enfatiza Natália. Nesse sentido, a casa cumpre um papel fundamental de inclusão, garantindo que cada morador seja respeitado em sua individualidade.

Ao entrar no imóvel, nota-se o cuidado com a decoração, as fotos, os quadros pessoais e até pequenos itens de times de futebol, como a camisa do Corinthians que um dos moradores adora exibir. “Eles gostam de se sentir parte desse lugar. Na cozinha, cada um tem seu próprio armário e todos sabem onde ficam os seus pertences. A comida é preparada com carinho, e quem quer ajudar pode cortar legumes, lavar louça, participar do processo”, conta a coordenadora. Ela acrescenta que, para quem viveu anos num hospital, sem liberdade de escolher o que comer ou a hora de acordar, esse é um resgate importante da autonomia.

A dinâmica diária também envolve atividades externas, como passeios nos parques, idas a clubes, eventos culturais e muito contato com outros moradores da cidade. “Eles circulam por Paraíso como cidadãos comuns, interagindo com vizinhos, comerciantes e amigos. Assim, o preconceito diminui e se enxerga o ser humano por trás do diagnóstico”, explica Natália. Os familiares, quando existem e mantêm vínculos, também são incentivados a participar da rotina e a visitar a casa sempre que possível. Infelizmente, nem todos os moradores têm família presente, fruto do estigma social que os afastou anos atrás. “Muitas foram simplesmente descartadas pelos parentes, mas aqui encontram o afeto e o sentido de pertencer a algum lugar”, diz.

No “Janeiro Branco”, mês de conscientização sobre saúde mental, essa iniciativa ganha ainda mais relevância. Além de evidenciar a importância de tratar o sofrimento psíquico de forma humanizada, a campanha incentiva a valorização dos cuidados necessários para manter o equilíbrio emocional. “A Casa Terapêutica se torna uma referência de como é possível promover a reinserção social de pessoas que passaram a vida toda atrás de muros psiquiátricos. É um grande exemplo de solidariedade e de compromisso com a dignidade humana”, afirma Natália. Ela lembra que a reforma psiquiátrica segue em constante debate e que, apesar dos avanços, ainda há muito a caminhar para romper definitivamente com práticas manicomiais que insistem em perdurar.

O modelo da residência terapêutica mostra que a moradia deve ser encarada como um direito universal. “O hospital não é lugar de viver. Aqui, eles recuperam a noção de lar, de rotina, de poder decidir por conta própria o que fazer, de ter as próprias roupas e objetos pessoais. A gente quer que eles se sintam incluídos na sociedade, e não como pacientes presos a uma cama”, diz a coordenadora. Para tanto, o trabalho de uma equipe multidisciplinar faz toda a diferença. Cuidadores e técnicas de enfermagem se revezam para auxiliar em tarefas como a administração de medicamentos e ajudar em momentos de crise ou maior fragilidade. Porém, a tônica é sempre a autonomia: cada morador tem a liberdade de organizar o próprio quarto, escolher as roupas e os alimentos preferidos, dando um passo de cada vez rumo à independência.

A residência é também um ambiente de aprendizagem mútua. “Eles nos ensinam muito sobre resiliência. Depois de tudo o que passaram, conseguem sorrir, brincar e acolher quem chega. São capazes de oferecer um copo d’água e perguntar se está tudo bem, demonstrando empatia e amizade”, comenta Natália. Em cada conversa, surgem histórias de superação, lembranças dolorosas do passado hospitalar e sonhos para o futuro. “A gente percebe que, ao sentir-se amado, o indivíduo se fortalece e vai se abrindo aos poucos. É um processo lento, mas vale a pena cada passo”, acrescenta.

O trabalho integrado com o CAPS e outros serviços da rede pública de saúde mental é fundamental para manter a assistência a cada morador. “O psiquiatra prescreve os remédios, o psicólogo faz o acompanhamento, e nós cuidamos para que tudo seja seguido adequadamente. Mas o mais importante é que eles se sintam parte do mundo fora da casa também”, diz Natália. Vez ou outra, surgem ações mais festivas, como aniversários ou datas comemorativas, que servem para reunir a comunidade e estreitar laços com a vizinhança. “A Festa Junina que fizemos foi um sucesso, um momento de confraternização em que todos dançaram, comeram comidas típicas e celebraram juntos. Teve quem nunca tivesse visto nada igual, porque passou a vida inteira dentro de um hospital”.

Para a coordenadora, falar de residência terapêutica é falar de um instrumento não apenas de assistência social e de saúde, mas de justiça histórica. “O que a gente fez no passado foi trancar essas pessoas, isolá-las e fingir que não existiam. Hoje, a gente se responsabiliza por elas, dando não só teto e comida, mas toda a possibilidade de viverem como cidadãos plenos”, reforça Natália. Ela acredita que esse modelo contribui para derrubar preconceitos, pois mostra que, mesmo com transtornos mentais, essas pessoas continuam a ter gostos, preferências, opiniões e a capacidade de se relacionar com o mundo.

Além disso, Natália pontua que o maior desafio é manter o trabalho de sensibilização da sociedade, para que novos casos não voltem a ser internados por longos anos sem necessidade. “O CAPS, as equipes de saúde da família e outros serviços devem atuar de forma preventiva, oferecendo tratamento e acompanhamento próximos da comunidade, evitando que alguém seja afastado e perca o vínculo com a família”, diz. A luta antimanicomial, segundo ela, ainda tem um longo caminho pela frente, mas iniciativas como a Casa Terapêutica demonstram que outro olhar é possível. “É preciso entender que o cuidado em liberdade traz mais ganhos do que a exclusão. Quem mora aqui se sente parte de algo maior, faz amizades, cria lembranças felizes e se reconhece como pessoa de direitos”.

No Brasil, a reforma psiquiátrica já completou várias décadas, mas continua demandando esforços para consolidar uma rede de atenção psicossocial eficaz, que respeite a autonomia de seus usuários. “Cada município que adere a esse modelo de residência terapêutica dá um passo a mais para superar o estigma. É um trabalho que exige recursos, mas, sobretudo, boa vontade política e respeito aos direitos humanos”, observa Natália. Ela finaliza a conversa com um convite à reflexão: “Precisamos olhar para a saúde mental de forma mais humana. Que cada um possa ser acolhido, amado e tratado com dignidade, lembrando que ninguém deve ficar isolado. A Casa Terapêutica é a prova de que, com estruturas adequadas, é possível construir uma sociedade mais inclusiva e solidária, onde todas as pessoas tenham espaço”.

A experiência exitosa em São Sebastião do Paraíso revela que muito se pode fazer para humanizar o cuidado em saúde mental. O simples fato de a casa estar num bairro comum, sem distinções aparentes, já derruba mitos e aproxima a comunidade. Lá dentro, essas cinco pessoas recuperam o gosto pela rotina, enquanto a equipe multidisciplinar garante um suporte constante. Mas o propósito maior é que todos voltem a enxergar a vida além das paredes de um antigo hospital psiquiátrico. “Eles são protagonistas de suas histórias, e nós estamos aqui para apoiá-los nessa nova fase”, conclui Natália. Cada residente carrega lembranças difíceis, mas agora convive num espaço acolhedor, cheio de afeto e possibilidades de crescimento. E é exatamente esse o sentido da luta antimanicomial e da reforma psiquiátrica: promover a vida em comunidade, com respeito, participação e cuidado para quem antes foi excluído.

Em janeiro, quando toda a sociedade se volta para a importância do cuidado com a mente, a mensagem da Casa Terapêutica ganha ainda mais força. De acordo com Natália, mostra que cada pequena conquista na reinserção social é um avanço na busca por uma sociedade inclusiva. Acolher, amar, cuidar e respeitar são elementos básicos que não podem faltar no processo de reconstrução da vida dessas pessoas.

Casa abriga cinco pessoas, com idades entre 30 e 60 anos
Horta no quintal fornece parte das verduras, legumes, frutas e temperos da mesa dos moradores
Moradores da Residência vão à feira e interagem com a sociedade