ENTRETANTO

Entretanto

Por: Renato Zupo | Categoria: Justiça | 05-10-2024 00:06 | 241
Renato Zupo
Renato Zupo Foto: Arquivo

Vozes da Segunda Guerra
Um seriado da Netflix, documentário com imagens inéditas matizadas digitalmente, aborda a interessantes dilemas durante a Segunda Guerra Mundial, vencida pelos aliados em face da Alemanha Nazista. “Vozes da Segunda Guerra Mundial” – mal traduzido o título. Melhor seria “Ecos da Segunda Guerra Mundial”. Mas é uma obra de arte estupenda pelos detalhes e episódios quase desconhecidos revelados na série.

Por exemplo. Em meados do conflito, o primeiro ministro inglês Winston Churchill reluta em bombardear a população civil alemã, mas acaba cedendo aos argumentos do seu aliado soviético Josep Stálin: seria impossível causar a descrença de Hitler junto ao seu próprio povo sem levar a guerra para dentro das fronteiras do Reich. Ou seja, se buscava descrédito e perda de apoio do regime nazista e se para isso fosse necessário o morticínio de civis alemães, seria o preço a pagar, ainda que bastante caro. Então bombardearam Hamburgo e mataram mais de 100 mil civis súditos do nazismo, entre mulheres e crianças, principalmente, porque a maioria da população alemã masculina estava nos fronts de batalha com a suástica no peito.

Outro exemplo. Ao invadirem a Europa continental no Dia D, os aliados pouco a pouco vão libertando o velho continente do domínio nazista. Desembarcam na Normandia francesa e quando chegam a Paris há festa nas ruas para os soldados americanos e britânicos. Na série, se revela um outro evento conhecido de poucos: como a capital francesa ficara sob o domínio de Hitler e do exército alemão por dois anos, muitas mulheres locais haviam iniciado relacionamentos amorosos com oficiais do Reich, tornando-se suas amantes. E elas foram identificadas, detidas e seus cabelos cortados brutalmente em praça pública pelos seus conterrâneos depois que o exército alemão é expulso de Paris. Com o olhar conivente dos soldados libertadores aliados.

No final da série e do conflito, há imagens que eu nunca tinha visto de Berlim após bombardeios incessantes, já com Hitler derrotado e encurralado e a Alemanha devastada. Seu centro histórico estava em ruínas, suas ruas em escombros, a população esfomeada e maltrapilha composta de mulheres magérrimas e enlameadas, crianças mendigando, homens amputados de guerra e sobreviventes das frentes de combate. Todos lutando por um pedaço de pão ou por roupas usadas distribuídas pela Cruz Vermelha. Confiram – imperdível.

Brutal
Todas as guerras são asquerosas, estúpidas, repletas de mortes covardes de inocentes – e as vezes são também… necessárias e inevitáveis. Israel foi a terra prometida e entregue aos judeus após a Segunda Guerra pelos aliados que a venceram e pela ONU, mas se esqueceram que a população árabe à sua volta não reza o mesmo credo ou pactua com idêntica opinião.

O povo israelita vem sobrevivendo, suportando e tolerando atentados e atos terroristas há décadas. Vez ou outra retalia e reage, mas sempre de maneira inconclusa. Ou seja, o conflito jamais se resolveu, muito menos pelas vias diplomáticas inúteis quando se tenta firmar um acordo escrito em grego para que seja assinado por dois jumentos que só sabem zurrar. Restou ao governo de Israel partir para a guerra total, porque agora resolve, por mais que o argumento pareça idiota. Desculpem. Mas se seu vizinho queimou sua casa, te bateu na cara, furou os pneus do seu carro, derrubou sua árvore, e não adiantou ligar para o 190, xingar ou fazer cara feia, sobra o quê para ser feito?

Israel detonou a Palestina, bombardeou o Irã e foi matar gente do Hezzbolah no Líbano, desconhecendo as fronteiras da ação armada que empreendeu para se defender do terrorismo praticado por partidos fundamentalistas radicais muçulmanos. Agora está sofrendo consequências de todo o mundo árabe, e a guerra no Oriente Médio está tão escancarada que nos faz esquecer do conflito na Ucrânia, ainda vigente, ainda covarde, ainda matando gente.

Ações e reações inevitáveis. Guerra tem que ter fim, se não pelo acordo, ao menos pela vitória integral de um dos lados. Por isso não consigo repudiar ao catolicismo que me batizou. Deem uma olhada no mapa do mundo: onde o cristianismo não pacificou proliferam os conflitos religiosos e políticos armados. A antiquada Igreja Católica, com todas as suas cruzadas e inquisições, ainda assim foi a responsável por ajudar a pacificar o mundo.

Voltando ao começo
Há alguns anos diversas empresas famosas multinacionais do mundo começaram a dar vazão e proteção à diversidade de gênero e étnica. Isto não significou simplesmente deixar de discriminar colaboradores ou altos executivos por sua preferência sexual, religiosa ou descendência racial.

Não somente isto. Significou militar em prol da defesa da diversidade. Criaram até um termo para isso: “Woke”, que passou a significar consciência sobre temáticas sociais – leia-se “bandeiras”- principalmente a antirracista. Tudo isso é bom, mas em excesso enjoa e não funciona, o que já estão descobrindo mundo afora.

Não se pode discriminar qualquer pessoa por motivos étnicos ou de preferências sexuais, religiosas ou políticas. É até crime em alguns países. Por isso, a consciência política dos Woke tem o seu lado bom, que vem de suas origens. Deixar de contratar um funcionário pela cor da pele, ou negar acesso ao serviço público por conta do gênero ou da preferência sexual, ou banir um cliente ou fornecedor por motivação religiosa, isso tudo passou a ser muito patrulhado e repudiado pelas sociedades modernas. E é bom. Ninguém pode sofrer represálias pela forma como vive, de onde vem ou por seus gostos e aptidões, ou por seu credo religioso ou político.

No entanto, esta preocupação saudável tomada pelas empresas e governos foi ficando superlativa, exagerada, chata. De deixar de discriminar para proteger ou superproteger o salto foi historicamente em uma década, em um átimo ou instante histórico. Passou-se a preferir afrodescendentes a brancos caucasianos para preenchimento de vagas em diretorias de multinacionais ou nomeação em cargos de alto escalão governamentais. De cotas sociais, sempre necessárias, passou-se às cotas raciais e para vulneráveis, sem levar em conta mérito, merecimento. Heterossexuais do mundo todo tiveram que se “precatar”, nos dizeres de Guimarães Rosa, porque passaram a ser acusados de masculinidade tóxica. De uma hora para outra fumar maconha passou a ser tolerado e o antiquado fumante de tabaco, execrado dos ambientes públicos e de trabalho.

A teoria da escada
A causa disso tudo na verdade é antiga, anterior à Constituição Brasileira (por exemplo) e vem do Estado do Bem Estar Social, ou Wellfare State. Se criaram aos direitos sociais de segunda geração quando os direitos liberais que os antecederam se demonstraram insuficientes para a proteção dos mais vulneráveis, pouco dotados de recursos para competir em uma economia de mercado – que era ao que as sociedades capitalistas se restringiam até então. A proteger o capital.

Depois da Revolução Russa e da Revolução Industrial isso mudou. Com medo do “rastro da onça” (para lembrar de novo de Guimarães Rosa), com medo do totalismo socialista, os governos do mundo passaram a adotar estratégias e políticas que pudessem dar paridade de armas aos desvalidos, provenientes de berços pobres ou de origens étnicas estrangeiras, ou simplesmente portadores de deficiência e imigrantes. Paridade de armas não. Paridade (ou igualdade) de acesso às oportunidades de mercado e socioeconômicas. Para a proteção dos vulneráveis, foram criadas ferramentas jurídicas que lhes propiciassem acesso igualitário ao mercado de trabalho e, com este, aos bens da vida.

A sociedade moderna adotou, para isto, a “Teoria da Escada”. Imagine-se um pote de mel no alto de uma estante e à disposição de um jovem alto e de um anão encarquilhado. O rapaz o alcança estendendo o braço enquanto o nanico não consegue chegar ao pote nem escalando tortuosamente a estante. De que adianta disponibilizar o mel para ambos, quando a oportunidade de buscá-lo será restrita aos mais capazes ou melhor contemplados pela sorte e pela fortuna?

Dando uma escada para o anão, no entanto, se permite a este verdadeira igualdade em relação ao concorrente mais alto, e iguala as chances de ambos de alcançar o pote de mel em primeiro lugar. Esta é a Teoria da Escada, que norteou ao Estado do Bem Estar Social. Isto, no entanto, está mudando, graças aos evidentes exageros que sempre permeiam a tudo que é mal dosado, mal interpretado ou mal aplicado, ou tudo isso junto.

Lambuzando-se no mel
Ou seja, está correto dar oportunidades iguais, ou igualar o acesso a estas oportunidades, aos candidatos menos dotados socialmente, seja pelo motivo que for. Está correto usar a escada para que todos possam chegar ao mel. Não se pode é exagerar na dose, para que os supostos vulneráveis de ontem se transformem nos privilegiados de hoje e amanhã. Não se pode é permitir a quem quer que seja se lambuzar no mel, desperdiçando-o, à despeito de suas mazelas.

As grandes empresas e os governos, e mesmo os intelectuais e formadores de opinião estão se apercebendo disso. O foco tem que ser a eficiência para contratar ou preferir, e a igualdade tem que ser propiciada no acesso à capacitação, não na obtenção do fruto do trabalho pura e simplesmente. Me diga você: se precisar de uma cirurgia cardíaca de emergência, vai querer o melhor médico, o mais bem preparado, ou se contentar que um que tenha vindo de uma cota de acesso social ou algum programa governamental que importou médicos da Nicarágua?

Todo excesso é imperfeito, desmazela, desvirtua. O excesso é pior do que a carência, a falta. Entre um e outro, prefira sempre o equilíbrio. É o que os donos do mundo estão aprendendo agora, depois de apanharem do mercado se preocupando em ouvir somente ao coitadismo social e à ditadura do “politicamente correto”.

O dito pelo não dito
Viver para odiar uma pessoa é o mesmo que passar uma vida inteira dedicado à ela.” (Guimarães Rosa, escritor brasileiro).

RENATO ZUPO
Magistrado, Juiz de Direito na Comarca de Araxá, Professor Universitário, Escritor, Palestrante